+++ title = "FSF e rms (De Novo)" date = 2021-03-29 [taxonomies] tags = ["gpl", "software livre", "fsf", "stallman", "rms"] +++ Mais ou menos a seis meses atrás, em 16 de setembro de 2020, Richard Stallman, também conhecimento como "rms" [reunciou sua cadeira da FSF](https://www.osnews.com/story/130635/richard-stallman-resigns-from-fsf-mit-after-defending-child-rape/) (Free Software Foundation, mantenedora da família de licenças GPL) com manchetes não-tão-boas. Há uma semana atrás, em 22 de março de 2021, rms anunciou ao mundo que [ele está de volta](https://www.zdnet.com/article/richard-m-stallman-returns-to-the-free-software-foundation-board-of-directors/). E agora estamos numa grande baderna. De novo ## Antes de mais nada... Deixem-me deixar algo bem claro de começo: Ninguém está negando o trabalho feito pelo rms. Ninguém está dizendo que o trabalho de criar um compilador inteiro para produzir um sistema operacional de código aberto não tem seus méritos. Todos esses são reconhecidos e mostram um grande trabalho para o bem maior. ## Entretanto... Existem alegações vindo de todos os lados que rms assediava as pessoas (principalmente mulheres), algumas pessoas se sentindo inconfortáveis com suas palavras e sua forma de agir; e, ao mesmo tempo, temos pessoas falando que não é tudo isso, que existe um "linchamento" acontecendo (sem mentira) e pessoas que mostram seu apoio. "Ele é uma pessoa boa ou má?" não é uma pergunta que eu pretendo responder aqui. Isso não faz parte do que me incomoda nessa discussão toda. Devido às suas opiniões fortes e reclamações gerais da sua presença, ele resolveu renunciar a sua posição da FSF, a organização responsável pela licença GPL e coisas relacionadas à ela, desde mantê-la ativa a ajudar desenvolvedores com questões legais do uso da licença. (Pessoalmente, embora o artigo acima diga que sua renuncia tenha sido em parte pelas notícias de pessoas usando o "serviço" de Jeffrey Epstein de garotas jovens como prostitutas, eu li que o apoio do rms ao Marvin Minsky, citado como um dos clientes de Epstein, não era "Isso, sexo com menores é ok!" mas "Eu acho que Minsky foi convencido que as garotas não eram menores de idade e forçadas ao sexo, então ele foi parte disso sem saber" -- e, de novo, isso foi o que eu entendi. E apenas neste ponto, para que fique claro). Mas, no fim, foi o que foi apontando durante a sua renuncia. ## E então... Em 22 de março de 2021, rms apareceu num evento online, [LibrePlanet](https://libreplanet.org/2021/) para anunciar que ele estava de volta ao board da FSF. Não houve um anúncio oficial sobre isso, e foi uma grande surpresa para todos. Dias depois do anúncio, a RedHat, a FSFE (Free Software Foundation Europe) e outras empresas e grupos tiraram seu apoio a FSF. ## Mas... O primeiro problema que eu vejo com tudo isso é que a FSF, enquanto promotora da abertura de software, que mantém uma licença que permite a todos terem acesso ao código, uma licença que promove a evolução do código fonte de forma aberta, de repente tomou uma decisão atrás de portas fechadas sem consultar ninguém fora do board. É estranho alguém promover abertura quando as duas próprias decisões são tomadas de forma fechada. ## E também... O segundo problema é o conteúdo do anúncio. De novo, sem entrar na discussão do "Ele disso isso", "Ele não disse isso", uma pessoa precisa entender o que foi dito que causou revolta. Não foi dito nada sobre "Olha, o que eu disso foi tirado de contexto" ou mesmo um "Eu escolhi mal minhas palavras e isso acabou machucando pessoas e eu prometo que vou tomar mais cuidado no futuro"[^1]. Eu acho que, se houvesse pelo menos alguma menção à isso, a revolta atual não seria tão forte. Não que não houvesse revolta, mas seria bem menos agressiva. Diabos, eu acho que se houverem qualquer menção ao entendimento do porque houve a primeira revolta, dessa vez seria bem menos dolorido. ## E finalmente... O terceiro problema é com o estado atual do software livre. Não, eu quero dizer que "ESTAMOS SENDO ENGOLIDOS PELA GANÂNCIA CORPORATIVISTA!", embora isso seja parcialmente verdade, mas estamos vendo a escalada de uso de licenças "meio-que-código-aberto-mas-não-exatamente", também conhecidas como "código disponível" como a [SSPL](https://en.wikipedia.org/wiki/Server_Side_Public_License) sendo recentemente adotada pela Elastic Corporation. Então que os recursos da FSF poderiam estar sendo usadas para remover [FUD](https://en.wikipedia.org/wiki/Fear,_uncertainty,_and_doubt) ou conceitos errados sobre as licenças GPL, agora nós precisamos focar em "Deveria estar no board?" O board inclusive teve que criar uma posição para que um membro [haja como diretor](https://www.fsf.org/news/update-on-work-to-improve-governance-at-the-fsf) e outras medidas para mostrar abertura, quando deveria haver foco em se certificar que licenças "código disponível" não se espalhem muito. ## Em conclusão... Eu só tenho uma pergunta na minha cabeça sobre isso: Alguém precisa realmente fazer parte do board para ajudar a FSF? Imaginem que, ao invés de dizer "Estou de volta ao board", o anúncio do rms fosse "Estou novamente ajudando a FSF a promover software livre". Ainda haveriam aqueles reclamando, mas acho que até mesmo esses pensariam "Bom, pelo menos ele não é *parte* da FSF". E a vida continuaria, e a FSF poderia focar na GPL e outras licençás, e ajudar empresas a não entrarem na armadilha do "licença código-disponível é a nossa única solução" e assim por diante. Então *por que* entrar no board? Não existe nenhuma outra posição que o rms poderia assumir na FSF? Eu duvido muito, mas alguém (ou alguéns) decidiu que não era o suficiente; board ou nada. "Já que ele está lá, deixa lá" como forma de amenizar a discussão não é a forma de lidar com o problema. A menos que haja uma discussão aberta do porque -- e, por curiosidade mórbida, por quem -- o rms retornou ao board, todo o ponto da FSF em serem os promotores de sistemas abertos parece estremecido pra mim, pessoalmente. ## Post-script Uma forma fácil de fazer um projeto se desfazer é a necessidade de terem heróis. "Se essa pessoa sair de férias, o sistema cai", "O sucesso desse projeto é por causa dessa pessoa" são sinais *feios* em um projeto. Por exemplo, quando o Guido von Rossum decidir abdicar da sua posição de BDFL, toda a comunidade Python estremeceu procurando uma forma de continuar -- principalmente porque a comunidade colocou pressão sobre ele por acreditar que a única forma de continuar progredindo fosse com o Guido na direção. A comunidade Rust, por outro lado, foca um bocado em remover essa imagem de "Esse é o projeto dessa pessoal", dando pequenas partes para várias pessoas: "Eu sei que tem uma pessoa liderando a parte de "melhores mensagens de erro", eu sei que tem uma pessoa liderando a parte de "async" (embora eu esteja vendo uma mudança em que vai liderar isso daqui pra frente), ei sei que tem uma pessoa liderando a parte de "Rust em ambientes embarcados" e assim por diante. Se qualquer um desses abdica do seu post, eu não vou sentir que o ecossistema inteiro de Rust está em perigo; é só uma parte do todo, e um substituto pode ser encontrado porque essa pessoa não era um "herói" daquela parte. A necessidade de heróis parece ser parte do problema da FSF: Sem o rms, não havia um herói abordo para promover o projeto. Porque ninguém realmente tentou sair da sombra do rms antes da sua renúncia, a licença terminou com um vácuo que ninguém preencheu -- ou sentiu a necessidade de preencher. O momento da renúncia era o momento para criar vários pequenos projetos, colocar vários nomes (talvez um punhado de novos nomes) neste projetos e mostrar que a FSF encontrou uma forma melhor de continuar. Mas porque eles nunca tentaram inovar, parece que ficaram esperando um novo herói surgir e decidiram chamar o anterior de volta. Software livre não deveria ser sinônimo de rms. --- [^1]: Por favor pessoas, isso não é difícil! Já me xingaram por usar "caras", e eu respondi que entendi o que eles queriam dizer, tomaria mais cuidado no futuro e agradeci pelo aviso. Desde então, eu procuro usar "pessoas" ao invés de "caras" (quem me conhece pessoalmente sabe que eu tenho um vício de linguagem forte em usar "cara") e tento, sempre que possível, usar pronomes neutros. E isso não dói **absolutamente nada**. E sim, em alguns casos é bem difícil de achar um pronome neutro numa língua como português.