+++ title = "O \"Unit\" de \"Unit Tests\"" date = 2016-11-23 [taxonomies] tags = ["unit", "unit tests", "tests", "kent beck", "tchelinux", "companion post"] +++ Existem vários artigos sobre os "testes de unidade" e alguns até falando de "a unidade dos testes"; todos estes estão errados e é preciso parar de falar dessa forma. {% note() %} (Este post é relacionado com a apresentação que eu fiz no dia 19 de novembro no TchêLinux. Os slides podem ser encontrados [na área de apresentações](http://presentations.juliobiason.net/unit-in-unittest.html#). {% end %} Boa parte do conteúdo que eu vou comentar aqui é relacionado com o vídeo de Ian Cooper [TDD, where did it all go wrong](https://vimeo.com/68375232). Quando eu vi o vídeo, imediatamente eu comecei a relacionar os comentários dele sobre TDD, na versão original de Kent Beck (o author do livro [Test Driven Development By Example](https://www.goodreads.com/book/show/387190.Test_Driven_Development?from_search=true), que foi o responsável por "reativar" a discussão sobre testes) com uma experiência pessoal trabalhando com TDD no mundo embedded. Antes que eu entre na discussão sobre o que é TDD de verdade, o que Kent Beck quis dizer com o seu "unit test" e essa experiência pessoal, é preciso fazer duas perguntas: * Quem já usou a expressão "testes de unidade"? * Quem já discutiu qual era a "unidade" de "testes de unidade"? Existem várias discussões sobre isso, incluíndo uma recente (com relação à este post, no entanto) sobre [como escrever testes de alta qualidade](http://www.marclittlemore.com/how-to-write-high-quality-unit-tests/) (em inglês), em que o autor comenta Se você estiver programando com orientação à objetos, a sua unidade devem ser as classes; se estiver programando de forma funcional, a sua unidade são as funções. O problema é que essa visão, além de incorreta com relação ao que Kent Beck prega no seu livro (pelo menos, segundo Ian Cooper), ela gera mais problemas do que soluções. ## Um exemplo errado de unidade Vamos pegar a ideia geral de "unidades de teste" e aplicar num pequeno caso. Digamos que você tenha a seguinte classe para manter seus clientes: ```python class Client: def __init__(self, name): self.name = name ``` Uma classe simples, onde você tem o nome do cliente (obviamente, num caso real, a classe teria mais propriedades e mais uma pilha de métodos, mas para fins de exemplo, vamos manter simples e curto.) Conforme o produto evolui, surge o seguinte requerimento: > Não podem ser cadastrados clientes com apenas um nome. Nesse ponto, você resolve aplicar os princípios [SOLID](https://en.wikipedia.org/wiki/SOLID_(object-oriented_design)), aplicando o "Princípio da Responsabilidade Única" e gera a seguinte alteração: ```python def _multiple_names(name): split_names = name.split(' ') return len(split_names) > 1 def _validate_name(name): if not _multiple_names(name): raise Exception("Invalid name") return name class Client: def __init__(self, name): self.name = _validate_name(name) ``` Isso obedece boa parte do SOLID e do SRP porque a função `_validade_name` tem uma única responsabilidade, dizer se o nome é valido ou não (e o "bacana" é que, se surgir uma nova condição definindo o que é um nome válido, basta adicionar nessa função a chamada do novo validador); ainda, `_multiple_names` tem uma única responsabilidade, dizer se o nome é composto por múltiplos nomes ou um só. Até aqui, não falamos nada de teste. Então vamos lá: você criou estes três componentes e agora quer escrever os testes. Como é preciso escrever um teste por classe e por função, você escreve essa excelente suíte de testes: ```python import pytest def test_single_name(): assert not _multiple_names('Cher') def test_multiple_name(): assert _multiple_names('Julio Biason') def test_valid_name(): _validate_name('Julio Biason') def test_invalid_name(): with pytest.raises(Exception): _validate_name('Cher') def test_client_error(): with pytest.raises(Exception): Client(name='Cher') def test_client(): Client(name='Julio Biason') ``` {% note() %} Sim, o certo seria escrever os testes antes do código, mas isso não é o que acontece; afinal de contas, como é que você teria um teste para a sua classe se você não escreveu a classe ainda -- e isso é mais uma prova que a pergunta de "unidade de teste" está errada. {% end %} Uma vez escritos os testes, você roda os testes e... ``` $ pytest client.py ==== test session starts ==== rootdir: /home/jbiason/unitt, inifile: collected 6 items client.py ...... ==== 6 passed in 0.03 seconds ==== ``` Excelente, todos os testes passaram; e como está a cobertura de testes (que é algo que todo mundo que fala em "unidades de teste" se preocupa, afinal de contas, você precisa garantir que tem testes para todas as classes e todas as funções, certo?) ``` $ pytest --cov=client client.py ==== test session starts ==== plugins: cov-2.4.0 collected 6 items client.py ...... ---- coverage: platform linux, python 3.4.3-final-0 ---- Name Stmts Miss Cover ------------------------------- client.py 25 0 100% ==== 6 passed in 0.11 seconds ==== ``` 100% de cobertura; excelente! Você encerra o dia e fica vendo vídeos no YouTube o dia todo, até que alguém do financeiro vêm com essa notícia: > "Não podemos perder a Cher, a Xuxa, a Madonna, a Björk e o String como > clientes!" Seu pensamento é "meleca". Bom, hora de retornar o código para seu estado anterior: ```python class Client: def __init__(self, name): self.name = name ``` {% note() %} Na verdade, a parte que deveria ser alterada é justamente a `_validate_name`, que não precisa mais perguntar se o cliente tem múltiplos nomes; eu mudei no lugar errado propositadamente para aumentar o efeito catastrófico da coisa. {% end %} Alteração feita, é hora de rodar os testes para ver o que aconteceu: ``` ==== FAILURES ==== ____ test_client_error ____ def test_client_error(): with pytest.raises(Exception): > Client(name='Cher') E Failed: DID NOT RAISE client.py:37: Failed ==== 1 failed, 5 passed in 0.63 seconds ==== ``` Ah, lógico! "Cher" agora é um nome válido e, portanto, não vai mais levantar a exceção. Você altera o `test_client_error` para não esperar a exceção mais e roda os testes de novo: ``` $ pytest client.py ==== test session starts ==== rootdir: /home/jbiason/unitt, inifile: plugins: cov-2.4.0 collected 6 items client.py ...... ==== 6 passed in 0.03 seconds ==== ``` Só para garantir, vamos rodar com cobertura de novo: ``` $ pytest --cov=client client.py ==== test session starts ==== rootdir: /home/jbiason/unitt, inifile: plugins: cov-2.4.0 collected 6 items client.py ...... ---- coverage: platform linux, python 3.4.3-final-0 ---- Name Stmts Miss Cover ------------------------------- client.py 24 0 100% ==== 6 passed in 0.12 seconds ==== ``` Aí você se dá uns tapinhas nas costas por ter arrumado as coisas super rápido por ter pensado em seguir o SOLID, os testes escritos continuam todos funcionando corretamente e volta a ver vídeos. Entretanto, agora você criou um monstro: as funções `_validate_name` e `_multiple_names` *não* são mais necessárias, mas você não vê isso porque os testes de cobertura continuam indicando que tudo está sendo testado. E assim sua base de código vai crescendo e ninguém vê exatamente que há partes desnecessárias porque a cobertura, que deveria indicar partes que não estão sendo chamadas... estão sendo chamadas (pelos testes). {% note() %} Algumas linguagens compiladas utilizam o conceito de "dead code": código que nunca é chamado e que não é necessário. Entretanto, dependendo da linguagem, isso pode não ser indicado em lugar nenhum porque o teste está usando a função e, portanto, ele não está realmente morto. {% end %} ## De volta a Kent Beck Se voltarmos ao que Kent Beck disse no seu livro, temos que > "Rode de forma isolada", nada mais, nada menos. Ou seja, não são "testes de unidade", mas "testes unitários", no sentido de que o teste consegue gerar e consumir todas as informações necessárias para completar sua execução. No nosso exemplo de clientes, um teste que faz a pesquisa por um cliente com um certo nome não deve, de forma alguma, depender do teste que cria clientes. O teste **deve ser** unitário, ele não depende de mais nenhum outro teste para funcionar. Discussões sobre "qual a unidade" é que levaram a criação de modelos como Behavior Driven Development (BDD) e Acceptance Test-Driven Development (ATDD); na verdade, o que elas fazem é mudar a semântica do que são os testes para que as pessoas olhem o que precisa ser feito ao invés de sair testando "unidades". ## O que testar A aproximadamente três semanas (novamente, baseada na data deste post) apareceu uma pergunta no Reddit sobre se [devem ser testados os componentes internos do Django](https://www.reddit.com/r/django/comments/5bearg/should_i_write_unit_tests_for_djangos_built_in/), especificamente, se um campo inteiro deve ter testes para averiguar se o mesmo retorna erro no caso de serem passados valores não-numéricos. Esse foi um ponto que, numa primeira instancia, eu achei que não, mas a verdade é que sim, isso deve ser testado. Não porque você quer garantir que um campo numérico só aceita valores numéricos, mas porque a sua definição desse campo (que pode ser, por exemplo, um CEP, ou uma idade) deve aceitar somente valores numéricos. Você não está testando se o framework retorna um erro com valores não-numéricos, mas porque você precisa validar se *o seu campo é numérico*. Em outras palavras, o que deve ser testado não é como o sistema foi implementado, mas se os *requisitos* pedidos estão sendo cumpridos ("a idade/CEP deve aceitar apenas números"). *Essa* é a unidade dos testes, se vocês quiserem insistir na falácia. Essa é a *única* unidade que deve ser testada. Ou, como melhor colocou Kent Beck: > Evite testar detalhes de implementação, teste comportamentos. ## O ciclo do TDD e o LSP Uma coisa que o TDD promove é o ciclo "Vermelho", "Verde", "Refatoração". Isso pode ser "traduzido" como > Escreva seu teste que garanta um certo requisito; como não há > implementação, ele irá falhar (aparecer como vermelho nos resultados dos > testes). > > Escreva a implementação. O teste irá passar para verde. Essa refatoração > deve ser o mínimo de código necessário para fazer o teste passar. > > Refatore o código para remover código duplicado, má escolha de nomes de > variáveis, quebras do SOLID, etc [#unclebob]_. {% note() %} Eu nunca consegui produzir código TDD de verdade, mas alguns vídeos, como por exemplo [Uncle Bob falando sobre test transformations](https://vimeo.com/97516288>), fazem com que eu acredite que TDD puro e correto *funciona*. {% end %} Normalmente, depois de refatorar, espera-se que o código volte para o vermelho -- ou, pelo menos, é o que o gráfico utilizado deixa a entender. Entretanto, se você focou no requisito e não na implementação, o teste deve continuar verde, por mais que você refatore. Se voltarmos para o exemplo do nome único, nossos testes seriam apenas dois: barrar usuários com apenas um nome e deixar passar aqueles com dois ou mais. Todos os demais testes são desnecessários porque não fazem parte dos requisitos. Se essa validação será feita no próprio `__init__`, se isso vai ser outra classe, se vamos mandar isso para outro serviço que fará a validação do nome, nada disso importa: o que precisamos é *barrar* usuários com apenas um nome e *aceitar* aqueles com dois ou mais. Nada mais, nada menos. Se voltamos para o SOLID, existe um princípio que se encaixa nessa consideração: LSP - Princípio de Substituição de Liskov. Esse princípio é, na verdade, um nome complicado para "design por contrato"; no nosso exemplo, nosso contrato é: "Se você mandar um cliente com apenas um nome, irá ocorrer uma falha; clientes devem ter dois nome ou mais." Se amanhã eu trocar a classe inteira por outra, se eu reescrever a classe inteira, se eu mudar de linguagem, o teste deverá continuar passando (claro, considerando que eu consiga rodar os testes numa linguagem diferente da linguagem da implementação). Meu "contrato" continua válido, não importa a implementação que estamos falando. Meus requisitos continuam sendo verdadeiros, não importa como eu implementei. Meu *comportamento* continua sendo verdadeiro, validado pelos testes. Parte disso vem da definição de requisitos. Se você não tem requisitos bem definidos, você não tem o que testar. E ficar testando funções e/ou classes não vai lhe ajudar em nada, porque estes não são seus requisitos e, portanto, não fazem parte do seu contrato. ## Como eu vi TDD funcionar de verdade Eu comentei no começo desse post como o vídeo do Ian Cooper ressonou com uma experiência pessoal trabalhando com TDD. Essa experiência foi relacionada ao trabalho com um gerenciador de alarmes: Vários componentes do sistema iriam gerar "eventos" e, conforme o evento gerado, o gerenciador de alarmes deveria 1) gerar apenas um log; 2) gerar um log e enviar um aviso pela rede; 3) ativar um indicador de erro que continuaria ligado até que outro evento o desligasse. Como seguimos os princípios do SOLID, o código ficou separado, internamente, em quatro componentes: um componente de tomada de decisão, que indicaria para quais outros componentes o evento seria enviado; um componente para geração de logs; um componente para avisos através da rede; e, finalmente, um componente que ativaria ou desativaria alarmes relacionados com o evento. Da mesma forma, como eu não tinha noção ainda de testar comportamentos, eu acabei escrevendo testes que injetavam diretamente um evento que deveria ser logado no componente de logs e verificava o resultado; um evento que deveria ser enviado pela rede e verificava se o mesmo era gerado; um evento que deveria ser mantido como alarme para o componente de alarmes e verificava se o mesmo era ativado (e outro teste que enviada o evento de ativar alarme e depois enviava o evento de desativar alarme e verificava se o mesmo ficava desativado -- afinal de contas, um teste não pode depender de outro). Entretanto, algo não "parecia" certo. No momento, parecia que tudo estava ok, mas não tínhamos a sensação de que o aplicativo como um todo estava funcionando. Foi nesse ponto que começamos a falar de "testes de ponta a ponta": testes que utilizariam um componente para gerar o evento externamente do gerenciador de alarme e, depois de chamado, verificaria o estado final do sistema. Estes testes, apesar de serem mais complexos de serem escritos (porque haviam várias camadas intermediárias até que que o evento partisse de um aplicativo e chegasse ao gerenciador de alarmes), eles passaram a fazer muito mais sentido que testar cada componente isoladamente. Na época, eu não me liguei o porquê, mas depois do vídeo, eu entendi: Fazia mais sentido porque estávamos testado o *comportamento*, não a *implementação*. ## Resumo Se tudo ficou complexo, eu posso resumir TDD (de verdade) da seguinte forma: * Escreva testes que verifiquem requisitos, não a implementação do requisito; * A implementação pode mudar, os testes não deveriam; * Garanta que o teste dependa apenas de si mesmo e não de outros testes; * Use cobertura apenas para identificar código que pode ser *removido*, não que precisa de testes (afinal de contas, se você está verificando todos os requisitos e um trecho de código nunca é chamado, o que esse trecho de código está fazendo?)